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Para Steve Jobs, é o fim do segundo ato

Quando eu voltei, em 1997, estava procurando espaço e achei um arquivo com Macs velhos e outras coisas. Eu disse: `Tirem isso daqui!´ e mandei toda aquela m… para (a universidade) Stanford. Nesse negócio, se você olhar para trás, será esmagado.

Quando eu voltei, em 1997, estava procurando espaço e achei um arquivo com Macs velhos e outras coisas. Eu disse: `Tirem isso daqui!´ e mandei toda aquela m… para (a universidade) Stanford. Nesse negócio, se você olhar para trás, será esmagado. Você tem de olhar para a frente." Assim Steve Jobs, o fundador da Apple, descreveu recentemente para um repórter suas reminiscências do primeiro computador Macintosh, lançado há exatos 25 anos. Pode ter sido a manifestação sincera de um visionário incapaz de perder tempo com o passado, ou simplesmente afetação. Mas é mais provável que fosse um pouco de cada coisa. Na trajetória de Steve Jobs, arrogância e egomania sempre dividiram espaço com uma percepção aguçada dos rumos da tecnologia e um talento sobrenatural para despertar nas pessoas o desejo de comprar. E esses não são os únicos traços conflitantes de sua personalidade. O hippie que disse que o ácido lisérgico mudou sua vida para sempre é o desbravador que permitiu às pessoas comuns experimentar pela primeira vez o poder da computação pessoal. O chefe que trata os funcionários aos gritos e insultos é o prestidigitador que em apresentações públicas seduz consumidores, analistas e jornalistas. O empreendedor vaidoso que sempre fez questão de personificar a empresa que criou é o mesmo CEO que reclama da falta de privacidade e do assédio da imprensa. Mais difícil que conciliar esses aparentes paradoxos, porém, é imaginar que eles podem nunca mais operar sua mágica juntos. Steve Jobs, empresário popstar, gênio da tecnologia e do marketing, pioneiro de revoluções que transformaram – e seguem transformando – a vida de todos os habitantes do planeta, está saindo de cena.

Na mensagem que enviou aos funcionários da Apple na tarde de 14 de janeiro, pouco mais de um mês antes de seu 54o aniversário, Jobs disse estar se afastando do comando da Apple até o fim de junho. Em teoria, serão apenas alguns meses de licença. O problema é que ficou difícil acreditar no que ele diz com relação a sua saúde. Budista e vegetariano há várias décadas, Jobs descobriu um tipo raríssimo de câncer em seu pâncreas em 2003. Ficou nove meses tentando tratá-lo com terapias alternativas – sem que o público ficasse sabendo da enfermidade. Convencido da necessidade da operação, Jobs removeu o câncer em 2004, disse estar curado e calou-se sobre o assunto. Todos acreditaram que o pior tinha ficado para trás – até ele aparecer em público em junho do ano passado magro e abatido. Desde então as especulações sobre um retorno do câncer ou eventuais complicações decorrentes da doença nunca foram afastadas de forma definitiva. Na primeira semana de janeiro, ele anunciou sua ausência do evento em que costuma mostrar as principais novidades da empresa para o ano. Atribuiu a perda de peso a um desequilíbrio hormonal e afirmou que o remédio seria "relativamente simples e direto". O comunicado terminou com a seguinte frase: "Disse mais do que queria dizer, e tudo o que gostaria de dizer, sobre isso".

Meros nove dias depois, porém, havia mais para contar. A situação seria "mais complexa" do que acreditava Jobs, o que o levou a anunciar seu afastamento do comando da companhia. As ações da empresa caíram quase 6% nas 24 horas seguintes à divulgação da mensagem. Os rumores voltaram com força total. Ele tem direito à privacidade como qualquer outro cidadão, especialmente num momento delicado como o que envolve doença. Mas não se está falando de um cidadão qualquer, e sim da figura que simboliza a Apple, uma empresa pública avaliada em 70 bilhões de dólares. "Os investidores merecem informações precisas, honestas e regulares caso questões de saúde envolvam uma pessoa tão central para a companhia", diz Stephen Davis, responsável pela área de governança corporativa da escola de administração da Universidade Yale. "A Apple é brilhante em eletrônicos e inepta na relação com seus acionistas."

Ainda que boa medida da admiração que Jobs inspira seja decorrente dos resultados espetaculares da empresa, não se trata de olhar para ele somente pelo ângulo financeiro. Jobs é uma dessas raras figuras realmente transformadoras. Quando ele aparece em cima de um palco, o mundo da tecnologia para e assiste com atenção. Foi assim em janeiro de 1984 quando ele, de gravata borboleta e cara de garoto, mostrou ao mundo o primeiro Macintosh. Batizado em homenagem a um tipo de maçã, o Mac original trouxe uma novidade chamada mouse e substituiu os comandos escritos em código por uma interface baseada em pequenos desenhos, que deveriam ser clicados (esse verbo, diga-se, não tinha sentido na época). Ali começava a cair a barreira que separava os primeiros entusiastas de uma novidade chamada computador do resto do mundo. Foi assim também em janeiro de 2007, quando ele, dessa vez vestindo os tradicionais jeans, tênis New Balance e suéter preto, apresentou o iPhone, um híbrido de telefone e computador ao mesmo tempo poderoso, elegante e fácil de usar.

Nos 25 anos que separam essas duas aparições, a tecnologia digital cresceu tremendamente e alterou por completo a forma de o mundo funcionar. Por toda a parte é possível identificar o dedo de Steve Jobs. Seu principal legado é ter trazido a tecnologia, antes restrita ao círculo de engenheiros e técnicos, para o dia-a-dia de bilhões de pessoas. Hoje há mais de 1 bilhão de computadores pessoais em uso, 55 milhões deles no Brasil – e todos têm em comum o parentesco com aquele primeiro Mac. Os PCs deixaram de ser apenas ferramentas de trabalho há muito tempo. Hoje são meios de comunicação e, cada vez mais, de entretenimento. Desde o fim da década passada as gravadoras sabiam que os CDs estavam com os dias contados, pois o futuro do negócio passaria obrigatoriamente pela distribuição de arquivos pela internet. Mas foi apenas em 2003, quando o iPod começou a ser tratado como sinônimo de música portátil, que a revolução do MP3 ganhou seus contornos atuais. Com acesso direto a milhões de tocadores de música, Jobs convenceu as gravadoras de que seria a Apple o melhor caminho para criar um mercado de venda de arquivos legalizados. Inaugurada em abril de 2003, a loja virtual iTunes Store contabiliza hoje a marca de 6 bilhões de faixas vendidas. A Apple vende sete em cada dez arquivos de música comercializados legalmente. Em abril do ano passado, a iTunes Store ultrapassou o Wal-Mart e tornou-se a maior vendedora de músicas do mundo.

Culto ao Mac

A terceira revolução posta em movimento por Steve Jobs aconteceu no mundo da telefonia celular. Apesar do estrondoso sucesso de vendas e crítica, o impacto do iPhone no efervescente mercado da mobilidade ainda não pode ser inteiramente compreendido. No iPhone há muito mais que o apelo estético e o auê de mídia gerado pela máquina de marketing da Apple. Com o aparelho, Jobs conseguiu estabelecer uma nova plataforma tecnológica capaz de atrair desenvolvedores de software, da mesma maneira que Bill Gates fez com o onipresente Windows no mundo dos PCs. Existem três vezes mais celulares que computadores no mundo, e ninguém acredita que haverá um sistema tão dominante no mundo móvel como o Windows. Mas não importa. Em menos de um ano, os 13 milhões de donos de iPhones baixaram nada menos que 500 milhões de programas, pagos ou gratuitos. Em termos de receita com a venda de aparelhos, a Apple já tem o terceiro maior faturamento da indústria, atrás da finlandesa Nokia e da sul-coreana Samsung. E a revolução da telefonia celular – ou da computação móvel – está apenas começando.

Os escolhidos

É dessa longa história de conquistas que Steve Jobs está se afastando, ainda que temporariamente. Mas, como ele mesmo disse, no mundo da tecnologia é obrigatório olhar para a frente – e, no caso da Apple, o futuro tem a inconfundível forma de um ponto de interrogação. Se tudo correr como o programado, até junho o dia-a-dia da empresa vai ficar sob o comando de Tim Cook, engenheiro apontado como um dos grandes responsáveis pelo recente sucesso financeiro da empresa. Pouco se sabe da vida pessoal de Cook, de 48 anos, além de que é solteiro e apaixonado por ciclismo e pela vida junto à natureza. Para os acionistas da Apple, a discrição de Cook nunca representou um problema. Contratado por Jobs há dez anos, ele foi o grande responsável por azeitar as engrenagens internas da companhia. A Apple tem uma característica que a torna fundamentalmente diferente das outras empresas do mundo dos PCs. No mundo Windows, o software fica por conta da Microsoft, e o hardware pode ter uma infinidade de marcas, como Dell, HP e Positivo. No mundo Apple, tudo fica sob controle da empresa. A produção das máquinas é terceirizada, mas todas as peças são desenhadas e fabricadas seguindo as diretrizes – ou a obsessão estética e funcional – determinadas em Cupertino, na Califórnia.

Veterano de 16 anos de empresas tradicionais de manufatura do setor tecnológico, como IBM e Compaq, Cook garantiu que as criações de Steve Jobs pudessem chegar às mãos dos consumidores sem defeito, em quantidades suficientes e a um bom custo. Ele também cortou custos de forma radical e, segundo a revista Fortune, chegou a traçar um paralelo entre estoques de computadores e de leite: "Se passa da data de validade (dos produtos), você tem um problema". Lição básica de administração: cobrar preços mais altos e ter menos despesas é igual a mais lucro. Nos primeiros três trimestres de 2008, a Dell, há uma década apontada como o exemplo da eficiência em manufatura, faturou 48 bilhões de dólares e obteve lucro de 2,1 bilhões. As receitas da Apple foram pouco mais da metade disso, 23 bilhões, mas o lucrou foi quase o dobro, 3,9 bilhões. A Apple também vende iPods e iPhones, é verdade, mas a comparação serve para dar uma ideia da importância que Cook tem para a empresa e para os acionistas.

O preço da quebra de confiança

Além da adoração por Bob Dylan e uma disposição fora do comum para o trabalho (os relatos dão conta de e-mails disparados às 4h30 e teleconferências marcadas para as noites de domingo), não existem muitas outras características em comum entre os dois principais nomes da Apple. Jobs é o criador, o irascível, o esteta, a celebridade. Cook é o executor, o sereno, o atleta – e o desconhecido. Ele próprio teria afirmado não se enxergar como o substituto de seu patrão. "Ora, substituir Steve? Não. Ele é insubstituível", teria dito Cook em certa ocasião. Essa ideia, proferida pelo CEO interino, enche de temor os investidores e fãs da maçã mais famosa do mundo. Em 1985, pouco mais de um ano depois do lançamento do Mac, Jobs foi posto para fora da Apple, vítima de uma manobra de John Sculley, o presidente que ele próprio havia contratado da Pepsico. Os anos de exílio de Jobs colocaram a empresa num lento e doloroso declínio. Em meados dos anos 90, com uma linha de produtos confusa, perdendo talentos e sem um rumo claro, a Apple caminhava rumo à irrelevância. Foi só com a aquisição da NeXT, empresa criada por Jobs em meados dos anos 80, que o filho pródigo voltou para casa.

Antes e depois de Jobs

A segunda passagem de Jobs pela Apple, interrompida agora em janeiro, é uma das histórias mais formidáveis de recuperação empresarial de que se tem notícia. De empresa combalida, a Apple passou a ditar tendências de design e de software. Voltou a ocupar uma posição de destaque tanto na cabeça dos consumidores, com os onipresentes fones de ouvido brancos, como em participação de mercado, com os vários modelos Mac chegando perto dos 8% do mercado americano em 2008, segundo o instituto de pesquisa de mercado International Data Corporation. O fracasso monumental que foi o lançamento do Windows Vista, o mais recente sistema operacional da Microsoft, também ajudou. A veneração a Jobs extrapolou o mundo dos fãs de carteirinha da Apple, também conhecido como o "culto do Mac". O pioneiro passou a ser também o popstar. "Ele é um artista. Quanto menos fala, melhor é sua imagem pública", diz Leander Kahney, jornalista da revista Wired e autor de A Cabeça de Steve Jobs. "As pessoas podem preencher os vazios com o que quiserem imaginar."

A questão é que ele é um ser humano, e de uma espécie bem difícil de lidar. Para cada lance genial de sua carreira há um relato descrevendo Jobs como uma pessoa intratável ou tomada por suas idiossincrasias. Kahney relata o processo de desenvolvimento da interface gráfica do OS X, o sistema operacional que faz funcionar todos os Macs. Ao longo de 18 meses, Jobs manteve reuniões semanais com a equipe de designers. Cada botão, canto de janela e desenho de menu era desenhado dezenas de vezes até que se chegasse à versão final. As barras de rolagem, item literalmente lateral na experiência do usuário, foram feitas e refeitas durante seis meses até que o chefe ficasse satisfeito. Além de obsessivo, Jobs é apontado como um executivo tirano e pouco interessado em reconhecer o talento alheio. "Se você contar uma ideia nova para ele, geralmente vai ouvir que é uma estupidez. Mas, se ele gostar daquilo, vai propor aquela mesma ideia para você uma semana depois, como se tivesse saído da cabeça dele." A frase foi dita por Guy Tribble, que não é um detrator de Jobs, muito pelo contrário. Tribble integrou a equipe que concebeu a equipe original do Macintosh, acompanhou Jobs na NeXT e hoje é um vice-presidente da Apple. Trabalhar ao lado de uma figura da estatura de Jobs sem dúvida é um privilégio – mas também exige talento aturar um tipo de comportamento nada convencional.

Apesar do estrondoso êxito com a Apple, foi com a abertura de capital do estúdio de animação Pixar, em 1995, que ele se tornou um bilionário. Quase dez anos se passaram entre a compra da empresa por Jobs e o lançamento de Toy Story, o primeiro filme da Pixar. Mas cerca de um ano antes da estreia da animação, exasperado com perdas que chegavam a quase 50 milhões de dólares e inseguro sobre a viabilidade da produção de longa-metragens de animação em três dimensões, ele considerou seriamente a venda do estúdio para ninguém menos que a Microsoft, de Bill Gates. Mudou de ideia graças a um instinto jobsiano, segundo uma passagem relatada no livro The Pixar Touch ("O toque da Pixar", ainda não lançado no Brasil). "Algo nele o fez recuar subitamente. Algo visceral lhe disse: `Isso vai ser estupendo´. " E foi mesmo. Criadora de sucessos como Procurando Nemo, Ratattouille e Wall-E, a Pixar é uma das maiores máquinas de hits de Hollywood e uma séria candidata a ter na imaginação dos jovens do século 21 o papel ocupado pela Disney no século passado.

A única vez em que Jobs falou de sua doença em público foi numa aula inaugural para uma turma de alunos de Stanford, em 2005. O câncer havia sido tratado um ano antes. Jobs discorreu sobre a morte. "Quando eu tinha 17 anos, li uma frase mais ou menos assim: ‘Se você viver cada dia como se fosse o último, um dia você vai estar certo’. Isso me impressionou", afirmou Jobs. "Lembrar que logo estarei morto é a ferramenta mais importante que eu encontrei para fazer grandes escolhas na vida." Alguns observadores tentam encontrar nessas palavras as pistas para seu afastamento do dia-a-dia do império que ele construiu. Jobs estaria ciente da gravidade de sua doença e decidido a passar mais tempo com a família – ele é casado e tem quatro filhos, um deles fruto de um relacionamento na juventude. Outros afirmam que o discurso foi apenas uma forma dramática de enfatizar uma convicção que esteve presente em sua personalidade desde sempre: se você não tiver a intenção de mudar o mundo, nada vale a pena. Jobs pode ser o protagonista de mais um retorno triunfal, o terceiro de sua vida. Pode também nunca mais colocar os pés na empresa que começou com seu amigo Steve Wozniak, em 1976, na garagem da casa de seus pais. Mesmo que desapareça do mapa, e Macintosh e iPhone sobrevivam apenas como verbetes da Wikipédia, Jobs terá sido bem-sucedido. Seu nome tem lugar garantido na pequena lista daqueles que ajudaram a mudar o mundo.
 

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