Li a coluna “Além do bem e do mal: pequena reflexão sobre a violência no Rio” com o respeito e a admiração que sempre tenho pelas reflexões da minha amiga e editora, Márcia Dias. No texto ela traz uma análise sensata sobre a violência no Rio de Janeiro que culminou com a ação mais letal da história, superando em mortes o massacre do Carandiru e busca enxergar a complexidade onde muitos preferem o simplismo. Concordo com muito do que ela disse especialmente quando aponta a hipocrisia que permite que criminosos de colarinho branco sigam impunes enquanto os pobres tombam nas favelas.
Mas há um ponto com o qual eu não consegui concordar: a ideia de que o caminho do tráfico seria ‘mais fácil’ ou uma ‘escolha’. Discordo porque essa me parece uma leitura incompleta de uma realidade muito mais cruel.
Márcia cita Nietzsche em seu clássico ‘Além do Bem e do Mal. Eu, com humildade, cito o rapper Criolo que em sua canção Esquiva da Esgrima, diz: “Pois quem toma banho de ódio exala o aroma da morte.” Essa frase, para mim, não é apenas poética, é um verdadeiro diagnóstico. O ódio que se acumula nas periferias não nasce do nada. Ele é cultivado pela ausência, pela fome, pela humilhação, pela violência cotidiana e quando tudo que se vê é dor, o crime não parece uma escolha, parece destino.
Aproveitando que citei Criolo, trago outro trecho, agora da música Cartão de Visita, que diz “O opressor é omisso e o sistema é cupim / E se eu não existo, por que cobras de mim?” para trazer luz a um pensamento que também é meu: o Brasil é um país onde o sistema corrói vidas desde o berço como um cupim que rói as bases, apodrece a madeira e depois culpa o telhado por cair.
A favela é um lugar onde muitas vezes não se tem como escolher entre o bem e o mal, ou há um relativismo, diante da dura realidade, sobre a melhor entre as duas escolhas.
Como exigir que uma criança que cresceu vendo armas e drogas na porta de casa, que não tem acesso a lazer, afeto ou segurança, escolha a moralidade e o caminho “certo”, crescendo entre tiros, fome, ausência e medo? Vendo o crime na esquina, o desemprego em casa, a humilhação na fila do posto?
É a indiferença no olhar do Estado que exige cidadania de quem ele nunca tratou como cidadão.
Quando um garoto da favela se envolve com o tráfico, não é apenas um erro individual. É o sintoma de uma doença social muito mais ampla. E mesmo entre os que tentam fugir estudando, trabalhando, resistindo, o sistema não perdoa: falta vaga, falta transporte, falta segurança, falta horizonte. Além de que o tráfico não é uma empresa com processo seletivo. É um sistema que recruta, que impõe, que domina. E muitas vezes, dizer “não” significa assinar sua sentença de morte.
Márcia usou a metáfora da floresta em chamas e eu também uso, mas não para culpar o fogo. Questiono quem deixou a mata secar, quem jogou a faísca, quem se omitiu enquanto tudo ardia. Porque, no fim, não é o fogo que escolhe queimar, é o descuido que o alimenta.
Enquanto isso, os verdadeiros donos do poder seguem blindados. São eles que financiam o tráfico, que lavam dinheiro, que mantêm o ciclo girando. Os que hoje carregam a arma podem ser os mesmos que, há alguns anos, pediam comida. Volto a citar Criolo: “Menino no farol cê humilha e detesta”.
Mas que fique claro: não estou defendendo o tráfico. Longe de mim. Ao meu ver, as drogas e o crime estão destruindo o país, causando medo, dor, morte e tensão tanto na favela quanto no ‘asfalto’. Repudio o crime em todas as suas formas. O que proponho aqui não é uma justificativa, mas uma tentativa de reflexão. Acredito que é preciso entender o contexto, porque combater apenas o sintoma sem curar a doença é perpetuar a febre.
O crime é a consequência; a causa, seguimos ignorando.
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Thatiane Sonally
PB Agora
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