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Conto da semana: ‘Eu, Ariano, Anayde, Augusto e outros sob o pé de tamarindo’

Eu estava bem próximo ao Palácio da Redenção esperando um velho amigo. Serelepe, como um esquilo, ele driblou a segurança do imponente prédio e veio com uma bola de meia e bodoque escondidos em um casaco de tecido grosso. Não querendo problemas com seu João e dona e Rita Villar, perguntei de imediato: “seus pais estão sabendo que vamos nos encontrar com Augusto debaixo do velho tamarindo?”. A resposta veio no “formato” de gaitada moleque. Uma gaitada típica dos pirralhos que habitam na distante terra chamada “A Pedra do Reino”.

Após a risada quase interminável e, digo mais, intolerante, Ariano bateu nas minhas costas afirmando que tudo estava pronto. Nossa ida até Cruz do Espírito Santo já havia sido permitida por seus pais, desde que fôssemos acompanhados pelos destemidos Jiló e João Grilo. Fomos num luxuoso Ford Bigode, numa incrível velocidade: 55 km/h. O motorista que servia seu João Suassuna tinha, realmente, gosto pela velocidade, para puro deleite meu, de Ariano e dos dois jovens que nos acompanhavam e contavam estórias mirabolantes.

Como era verão, a poeira vermelha se espalhava enquanto o automóvel ziguezagueava numa estrada de barro batido. Lembro que era difícil respirar pelo fato do veículo estar tomado por uma mistura de pó e terra ou coisa parecida. Francamente aquilo era um suplício, um estorvo para mim e Ariano, pessoas da urbe. Já Jiló, João Grilo e o experiente motorista pareciam não notar que o solo descolava-se bem abaixo dos nossos pés.

Após horas de viagem e a monótona paisagem da cana-de-açúcar de um lado e outro da estrada, finalmente chegamos ao Engenho Pau d´Arco, na divisa entre o que hoje estão situados os municípios de Sapé e Cruz do Espírito Santo. Ao ouvir o barulho do possante Bigode, fomos acompanhados por uma “procissão” de vira-latas até a frente de um belo casarão colonial. Os pais de Augusto, seu Alexandre dos Anjos e dona Córdula de Carvalho estavam sentados, cada um, em surradas cadeiras de balanço.

Perguntamos por Augusto e, meio sonolentos, pai e mãe responderam, em uníssono: “está falando com o pé de tamarindo”. Com a “posição geográfica” já esclarecida, fomos direto àquela imponente árvore segura por enormes raízes e quase pairando numa chuva de borboletas amarelas. Sentado, vimos nosso amigo declamar melancólicas e excêntricas poesias, porém belas.

Naquele instante pedimos para jiló e João Grilo saírem de cena e ir tomar um café com tapioca juntamente com o motorista. Fizemos isso já que Augusto era bastante introspectivo na presença de estranhos. Quando os “intrusos” partiram chamamos nosso amigo poeta: “Augusto!” Ele nos fitou com certo sorriso e pediu para nos aproximarmos. Perguntei o que eram aquelas anotações num já desgastado caderno, e ele, de forma pausada, disse com a mais pura simplicidade: “é o livro que estou a escrever”.

Eu e Ariano quase rimos, mas nos contemos, perguntando de imediato como se chamaria a obra. O nome do livro será “Eu”. Galhofeiro, Ariano perguntou se não tinha algo menor. Augusto entendeu a ironia mais não deu bola. Já conhecia o espirituoso amigo.

Após falarmos um pouco da vida de cada um, fomos brincar com a surrada bola de meia. A partida era ainda mais animada quando um de nós levava um tombo. Nessa algazarra infantil eis que surge o nosso amigo regionalista: o bom e talentoso José Lins do Rego. Ele vinha de Pilar acompanhando seu pai, que saia do Engenho Corredor duas ou três vezes por ano, para comercializar açúcar naquela região.

O “Menino de Engenho”, era assim que nós o chamávamos, trazia bolas de gude nas suas algibeiras, e logo trocamos o futebol por prolongadas partidas com aquelas bolinhas de vidro.

Depois de nos cansarmos, eis que surgem quatro silhuetas ao longe, cujos rostos estavam tomados pela luz do verão. Eles vieram em nossa direção e, aos poucos, íamos reconhecendo aqueles “fantasmas luminosos”.

O magrelo tinha um gosto pelas artes, especialmente a pintura, e o que estava ao seu lado, um pouco mais alto, vestindo calça curta e camisa de linho branco, tinha um leve hálito de bagaço de cana. “Uma verdadeira Bagaceira”, brincou Augusto, num raro momento de deboche infantil.

Estavam ali velhos amigos vindos de muito longe. Especificamente onde a vaca foi ou veio para o Brejo. Tratava-se de Pedro e José Américo. Mas devo lembrar o não parentesco dos dois.

Para completar a trupe, diante de nós surgiu um guri gordinho e risonho com sobrenome “afrancesado”. Era Assis Chateaubriand e uma moçoila linda, de olhos escuros e bastante inteligente. Não a conhecíamos, exceto Ariano, que tratou de nos apresentar: “esta aqui é a futura poetisa Anayde Beiriz”. De fato, mais tarde ela despontou como uma bela e talentosa mulher, numa época que o sexo feminino de famílias abastadas apenas tocava piano, bordava e cuidava da prole.

Naquele rico cenário da natureza, não discutíamos política ou assuntos de adultos. Não havia amargura, dor ou ostentação. Éramos, somente, crianças brincando debaixo de um frondoso tamarindo. É claro que era eu o mais limitado intelectualmente falando. Mas aquelas crianças superdotadas não ligavam. Queriam, apenas, diversão. Diversão infantil que o mundo, um dia, tragou deles, embora todos tenham deixado importante legado.

Terminamos aquela tarde ouvindo José Américo ler para nós um livro de bela estória , cujo autor, José de Alencar, descrevia no romance “Iracema”, uma bela índia, de cabelos negros e lisos que se apaixonara por Martim, português que no Brasil se instalara. Era a junção entre a natureza e a civilização.

A junção de uma infância pura e a passagem para um mundo adulto cheio de surpresas. Uma pequena parte, descrita em despretensioso conto, da nossa bela e brava Parahyba. Uma terra que não foge à guerra, mas que sempre busca preservar a paz.

Eliabe Castor
PB Agora

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