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Sob ameaça, tribo de Botsuana luta para não deixar reserva

Eles caminhavam sob o sol escaldante e, enquanto se aproximavam, suas formas pareciam uma continuação do deserto. As roupas esfarrapadas pareciam arbustos espinhosos enrolados nas cinturas. Estas pessoas castigadas, da tribo dos bushmen (ou bosquímanos) – quatro homens, três mulheres e uma criança – estavam se aproximando do fim de uma jornada de dois dias em busca de água.

O líder é Gana Taoxaga, um homem forte para sua idade e um dos poucos a resistir às manobras do governo local de expulsar seu povo desta reserva de caça do Botsuana, que foi a terra de seus ancestrais. Ele carregava uma lança e uma sacola de caça pendurada no ombro, que continha um graveto, um machado, arco e flechas cobertas de um veneno feito a partir de larvas de besouro.

Taoxaga estava irritado e frustrado por ter que andar tão longe para matar a sede. Ali perto havia um poço, um buraco cavado no solo que dava direto no manancial de água subterrânea. Mas o governo decidiu fechá-lo e ele supôs que fosse apenas uma outra maneira de expulsar os bushmen do deserto, que é seu lar há milênios. "O governo diz que maltratamos os animais, mas eu nasci aqui e os animais nasceram aqui, e nós vivemos muito bem juntos", diz ele.

Início da civilização
De vida humilde, os bushmen do Kalahari central do Botsuana são muito conhecidos em todo o mundo, tendo sido tema de livros, filmes e estudos antropológicos. Eles são frequentemente retratados – ou, como muitos dizem, romanceados – como caçadores e coletores, uma ligação viva com o início da civilização.

Porém, durante décadas este povo tem sido entrincheirado em uma luta de forças sobre o seu destino, a qual muitas vezes passa despercebida na mídia. Uma saga que ficou repleta de editais e processos, com o abuso de álcool e separação de famílias – um povo aborígine desesperado com a incerteza de seu futuro .

Desde 1980, Botsuana, um país de 2 milhões de pessoas sem saída para o mar, tem persuadido e perseguido os bushmen para que deixem a reserva, com a intenção de restringir a área para aquilo que seu nome diz: um refúgio de vida selvagem sem habitantes humanos. A retenção de água é uma das táticas. Em julho, a suprema corte do país decidiu que o governo tinha todo o direito de negar o uso desse oásis moderno, o poço. Um recurso foi apresentado em setembro.

Reassentamento
Atualmente, apenas algumas centenas de bushmen vivem dentro da reserva, e alguns, como Taoxaga, ainda sobrevivem em grande parte graças aos conhecimentos herdados de seus ancestrais, como a caça de antílopes e lebres, coleta de tubérculos e melões selvagens e uso da água escondida em raízes de plantas.

Entretanto, a maioria dos bushmen foi transferida para áreas de reassentamento localizadas na periferia, onde eles precisam fazer fila para beber água, esperar em bancos para serem atendidos na clínica, ficar procurando algo para fazer, aguardar a abertura dos bares para que possam esquecer seus problemas bebendo cerveja feita de sorgo. Um povo que já foi um dos mais autosuficientes da terra vive agora no desemprego, à espera de esmolas.

"Se houvesse algum tipo de mágica que pudesse me levar para o passado e me libertar, é para lá que eu iria", afirma Pihelo Phetlhadipuo, um bushman idoso que vive em uma área de reassentamento chamada Kaudwane. "Já fui um homem livre, mas agora não sou mais."

Mito
Há cerca de 100 mil povos indígenas conhecidos como bushmen ou san no sul da África – termos normalmente usados pelos estrangeiros e muitas vezes pelos próprios povos. Aproximadamente metade deles está em Botsuana, e os 3 mil que historicamente habitam esta parte ondulada do deserto, coberta de vegetação, em geral pertencem aos subgrupos gwi e gana e falam uma língua que emprega consoantes extras. Para falarem uns com os outros, eles normalmente se identificam por subgrupos; com os estrangeiros, eles usam a palavra Basarwa.

Este povo já foi tocado pela civilização. De fato, o "mito do último bushman" tem se mostrado falso por mais de um século, segundo explica Jeffress Ramsay, historiador que também é um porta-voz do governo. "Os mitos externos não ajudam aqueles como nós, que estão aqui para resolver problemas", diz ele. A maior dificuldade dos bushmen, segundo ele, é a pobreza.
A reserva de caça do Kalahari central, que ocupa uma área maior que Vermont e New Hampshire combinados, foi fundada pela administração colonial britânica em 1961. A intenção era não apenas proteger a vida selvagem, mas também viabilizar a vida dos habitantes de lá. Na época, alguns se perguntaram se isto era o melhor para os bushmen ou eles estariam sendo preservados como primitivos em um zoológico para os antropólogos.

George Silberbauer, o oficial da colônia que estava no comando naquela época, argumentou que muitos bushmen já mantinham contato extensivo com pessoas de fora da reserva. Ele escreveu que, em vez de serem "curiosidades de museu", eles seriam capazes de ir e vir livremente, prendendo-se ao passado da forma que quisessem.

Minoria
Botsuana se tornou independente em 1966. A visão do governo era de que os bushmen constituiam uma minoria empobrecida, que habitava um terreno acidentado, onde se tornava difícil oferecer auxílio. Já naquela época, muitos estavam migrando para o Xade, um assentamento dentro da reserva, onde um poço havia sido perfurado anos antes.

Os bushmen são pragmáticos. Livres da busca extenuante de água, as pessoas começaram a criar cabras e galinhas e cultivar jardins no solo arenoso. O governo concedeu um posto de saúde móvel, rações de comida e uma escola.

Mais tarde, essas atividades foram usadas como motivos para remover os bushmen. Eles "estavam abandonando seu estilo de vida tradicional de caçadores e coletores e caçando com armas e cavalos”, justificou o governo, em uma explicação por escrito.
Além disso, segundo os representantes do governo, Botsuana deseja ser uma nação moderna. A descoberta de diamantes transformou o país em um dos mais ricos da África. Seria injusto deixar os bushmen sofrendo em condições de subdesenvolvimento, em uma tentativa de usar a preservação de sua cultura milenar como pretexto para ignorar suas enormes necessidades.

Ameaças
As pessoas que vivem na reserva passaram a ser chamadas de "habitantes da área remota". Até 2002, a maioria dos bushmen já havia deixado sua terra natal, muitos deles atraídos por uma pequena quantia em dinheiro e gado; outros disseram que haviam sofrido ameaças.

Um grupo de bushmen processou o governo em 2002, pedindo que fossem autorizados a regressar para a reserva. Após aguardar quatro anos para o julgamento, a decisão não deixou ninguém plenamente satisfeito: a suprema corte determinou que eles poderiam voltar para suas casas, mas o governo de Botsuana não teria a obrigação de lhes fornecer serviços.

Mais tarde, o governo interpretou a decisão no sentido de que apenas os 189 autores do processo tinham o direito de habitar a reserva sem precisar de permissão especial. Não ficou claro o que estaria permitido para os bushmen. Eles poderiam caçar e reabrir os poços?

Muitos outros bushmen disseram que querem voltar. Ramsay, o porta-voz do governo, diz que as negociações estão em andamento e o retorno pode acontecer, mas sob condições estritas: o governo não quer permitir a criação de animais domésticos ou a caça de animais selvagens.

"É uma reserva de caça, e esse tem sido o problema desde o início", diz ele.

Desconfiança
A desconfiança complica qualquer negociação. Até hoje, muitos bushmen viveram fora da reserva por uma década ou mais. Eles formam um grupo heterogêneo, com diferentes níveis de educação e emprego e com disputas internas.

O governo está irritado com a intromissão e reprovação de estrangeiros, especialmente da Survival International, organização britânica que reivindica que os bushmen foram expulsos para dar lugar à mineração de diamantes e ao turismo.

A exploração de diamantes realmente já começou na reserva, embora nenhuma mina esteja funcionando neste momento. Existe um pequeno acampamento turístico com uma piscina e dez barracas de lona e seu site menciona uma “caminhada guiada pelos bushmen" , em que os convidados "ganham conhecimentos de vida com a cultura única deste povo fascinante".

Nas áreas de reassentamento, a "cultura única" se mistura à cultura familiar dos desalojados. Os indigentes raramente caçam ou colhem frutas. Em vez disso, eles recebem parcelas mensais de farinha de milho, feijão, sorgo, açúcar, chá e óleo de cozinha. As pessoas estão infelizes por serem dependentes; elas estão com raiva por não poderem lutar por mais.

"Fomos despejados aqui e quando tentamos voltar, eles nos param no portão", conta Moscow Galatshipe, um homem de 43 anos, que vive em Kaudwane. "Não há emprego. Vamos todos acabar na prisão por roubar cabritos ".

Terra

 

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