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A vez dos italianos

Até o início desta década, o futuro da Fiat estava gravemente ameaçado. Em 2002, o endividamento chegou à casa de 35 bilhões de dólares. Quase um terço do montante venceria a curto prazo, e operações bilionárias de aumento de capital se revelavam inócuas diante da máquina de perder dinheiro em que se converteu a tradicional montadora italiana. A família Agnelli, ainda à frente da companhia, mostrava-se impassível, mas era dada como certa a transferência de controle da empresa à General Motors. Bastava que a americana exercesse uma opção de compra, firmada em 2000, e o comando do negócio se transferiria de Turim para Detroit.

Quando Giovanni Agnelli morreu, aos 81 anos, houve quem imaginasse que o grupo sucumbiria sem o mais célebre integrante da família a dirigir os negócios. Apenas quatro meses depois de sua morte, o irmão mais novo, Umberto, decidiu trazer para o conselho de administração do grupo o executivo Sergio Marchionne. Em poucos anos, o canadense filho de italianos, formado em Direito e Contabilidade e sem nenhuma experiência na indústria automotiva, conseguiu sanear os balanços da companhia. De quebra, esteve à frente de uma série de lançamentos de sucesso, como o do novo Cinquecento, que contribuiu para reverter a imagem da montadora, associada a modelos superados.

Vale ressaltar que o processo de recuperação contou com o apoio providencial da própria GM. Incapaz de levar adiante o processo de aquisição, a companhia teve de desembolsar 1,5 bilhão de dólares para se ver livre do compromisso. Coube a Marchionne, presidente do grupo desde 2004, quando faleceu Umberto, o último Agnelli à frente da empresa, usar os recursos e dar a volta por cima. O esforço poderia ter parado por aí, mas ele quer mais. Nas últimas semanas, o executivo, que diz ainda pensar em inglês, tem se revezado entre reuniões nos EUA e na Alemanha, e se mantém firme na meta de fazer da Fiat a líder de aquisições do mercado automotivo ocidental.

Está nas mãos do presidente da Fiat a possibilidade de trazer de volta à vida a Chrysler, terceira maior montadora americana, com a qual os italianos fecharam um acordo estratégico. Em Berlim, Marchionne discute o apoio do governo alemão à proposta de assumir a Opel, o braço europeu da GM. A marca belga Saab e a inglesa Vauxhall também entrariam no pacote. No campo das especulações, haveria uma negociação em curso para a aquisição das operações da GM na América Latina. Como se trata de unidades lucrativas, como a brasileira, tal alternativa é menos palpável.

Segundo Marchionne, para permanecer no negócio uma montadora precisa produzir 5,5 milhões de carros por ano. A Fiat ainda não chegou à metade desse número. Mas conseguiu, com a aliança, 20% das ações da Chrysler, e pode ampliar esse porcentual a 35%, caso a companhia americana consiga sair da concordata. O plano conta com o aval do presidente Obama, que o quer aprovado antes que a Justiça decrete a falência da empresa. Se assumir o controle da parceira e também o da Opel, o grupo italiano será responsável por um grupo com faturamento de 80 bilhões de euros e vendas acima de 6 milhões de unidades por ano.

Com o distanciamento correto, é possível enxergar um movimento ainda mais expressivo no setor automobilístico. A disputa maior, hoje, não ocorre entre as montadoras ocidentais. Demorou um pouco, mas os asiáticos aprenderam a fazer carros tão bem quanto os americanos e europeus. Na verdade, quando não fazem melhor, fazem mais barato. A crise ocorre justamente quando a japonesa Toyota havia ultrapassado a GM na liderança mundial do setor. No ano passado, a indiana Tata comprou as marcas Jaguar e Land Rover da Ford. Enquanto isso, a sul-coreana Hyundai dá mostras de ter conseguido superar a má fama inicial e emplaca modelos de luxo nos mercados mais exigentes. Fora as marcas chinesas que, se ainda não se tornaram conhecidas fora do mercado local, é por saberem que ainda há muito mercado a explorar dentro de casa antes de buscar os mercados já consolidados.

É preciso, nesse ponto, fazer justiça aos Agnelli. Gianni tornou-se um mito não só por sua influência sobre o governo italiano, que investiu pesado nas rodovias, mas também pelo sucesso ao instalar fábricas de automóveis na Rússia, na Índia e no Brasil, depois de malfadada experiência na Argentina. No auge da crise da montadora, no início dos anos 2000, a aposta nos mercados emergentes e, sobretudo, a insistência em reinvestir nesses países o lucro por lá obtido foram apontadas como motivos para o fracasso de sua gestão. O presente lhe dá razão.

Às antigas líderes do mercado automotivo restou a opção de recolher os cacos e se agrupar em grupos fortes o bastante para sobreviver à nova realidade. Vide o exemplo dos controladores da Porsche, que, depois de tentar assumir o controle da Volkswagen, finalmente se resignaram e, na quarta-feira 6, anunciaram que vão se integrar a uma só empresa, maior. Se chegar a um entendimento é difícil entre grupos com estreitas ligações acionárias, o que dizer de empresas com histórias e culturas tão diferentes, como GM e Fiat? Eis a vantagem de escalar para a tarefa um executivo com sangue do Velho e do Novo Mundo nas veias. “Marchionne é um canadense para os americanos e um italiano para os italianos. Como integrante do conselho do UBS, é também um banqueiro para os suíços. E esses são os três componentes-chave para o negócio: as culturas norte-americana, italiana e financeira”, analisou, em entrevista ao jornal inglês The Independent, o executivo Dennis Redmont, do Conselho Ítalo-Americano.

A Fiat quer retomar sua posição nos EUA, de onde saiu há décadas, e também na Europa, onde perdeu mercado, sobretudo desde o fim dos anos 90, quando enfrentou sua própria crise. A ideia é estar bem posicionada nos grandes mercados quando as nuvens negras da crise financeira internacional começarem a se dissipar. Para isso, será necessário passar à frente de uma forte concorrência pelas partes da GM colocadas na vitrine. No páreo pela Opel, ao lado da Fiat, estariam o grupo canadense de autopeças Magna e a montadora Gaz, do magnata russo Oleg Deripaska, além de fundos de investimento privados. Outro braço cobiçado da GM, a belga Saab, teria passado recentemente por ao menos dez due diligences, como são chamadas as auditorias que antecedem as aquisições. Uma das interessadas é a fabricante de automóveis chinesa Geely.

A vantagem da Fiat, ao menos no caso da Opel, reside na boa vontade demonstrada por Marchionne diante das catorze condições impostas pelo governo alemão para dar aval à compra. O sinal verde das autoridades é fundamental, diante da necessidade de financiar, com recursos públicos, o plano de negócios de 5 bilhões a 7 bilhões de euros traçado para reerguer a montadora. Entre as exigências de Berlim constam a construção de uma sede no país e a manutenção das quatro fábricas locais em funcionamento.

A professora de Análise Econômica da Fundação Getulio Vargas Celina Ramalho avalia que a opinião dos governantes ganhou peso, a partir da eclosão da crise financeira internacional, no cenário das fusões e aquisições de corporações multinacionais. “O papel do Estado ressurgiu em outra dimensão. Há 40 anos era investidor, depois tornou-se regulador e, nos últimos quinze anos, vinha se conformando como indutor dos investimentos”, analisa. Mas a recente escassez de crédito privado, de acordo com a especialista, conferiu nova importância aos recursos públicos, usados não só para livrar empresas da bancarrota, mas também para permitir que parcerias fortaleçam setores em dificuldades.

O acordo da Fiat com a Chrysler, nos EUA, embora conte com a bênção do governo, está sujeito a ameaças que ultrapassam os riscos inerentes à operação. Credores prometem levar à Justiça suas objeções ao plano de recuperação da companhia, que prevê o congelamento de parcelas da dívida e uma série de abatimentos nos débitos. A Renault está à espreita, enquanto negocia acordos com a GM para ficar com a Saturn, ou ao menos aproveitar a rede de distribuição da marca nos EUA. Oficialmente, o presidente da Renault-Nissan, o brasileiro Carlos Ghosn, nega o interesse em aquisições e reafirma a necessidade de ajustar a contabilidade à conjuntura atual.

“Mais do que colocar as contas em ordem, as montadoras ocidentais precisam se reinventar a partir do chão de fábrica”, afirma Celina. “Elas não concorrem mais com cinzeiros sobre quatro rodas, como os consumidores chegavam a se referir aos carros asiáticos em um passado não muito distante. As novas concorrentes superaram a barreira da qualidade e da quantidade, e são capazes de inundar o mundo com modelos competitivos.”

Bilhões de euros gastos em pesquisa e desenvolvimento nos últimos anos colocaram a Fiat um passo à frente das concorrentes tradicionais, mas ainda atrás dos japoneses, por exemplo, capazes de manter um alto padrão de qualidade com um mínimo de custos. A unidade brasileira, responsável pelo maior mercado da montadora fora da Itália, deu um sinal claro de que a Fiat reconhece essa limitação e está disposta a ultrapassá-la. Desde o ano passado, consultores treinam funcionários da fábrica de Betim (MG) no sistema Lean, inspirado no modelo de produção enxuta das fábricas japonesas da Toyota. Paralelamente, um professor da Universidade de Kyoto foi trazido ao Brasil para implantar novos programas de qualidade nas áreas de gestão e manufatura.

“Apesar da crise, a Fiat continua a investir em qualidade. É essa postura que fez a empresa se tornar o que é no Brasil”, afirma o diretor-executivo do Lean Institute, Gilberto Kosaka. Segundo ele, foi à custa de esforços que a montadora italiana conseguiu, em pouco mais de três décadas no País, ultrapassar a Volkswagen em vendas e apagar a imagem de inferioridade dos modelos da marca. “A Fiat apostou há muito tempo nos modelos menores, mais baratos e eficientes, exatamente o tipo de carro que a indústria automobilística mundial persegue hoje, de olho no futuro”, completa.
 

Carta Capital

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