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Após um ano, receptores de órgãos de Eloá começaam a viver

Há um ano, após perder de modo trágico a filha Eloá, de apenas 15 anos, Ana Cristina Pimentel teve poucos minutos para tomar uma decisão até então inimaginável em sua vida: doar ou não os órgãos da garota.

Eloá Pimentel havia acabado de ser mantida refém e depois assassinada pelo ex-namorado no ABC em um caso acompanhado por quase todo o Brasil. Apesar do abalo, Ana Cristina diz não ter hesitado. “Não tive dúvida. Quando os médicos vieram falar comigo, eu já estava decidida.”

Assim como ela, outros parentes têm mostrado, a cada ano que passa, menos preconceito com relação à doação de órgãos. Dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) comprovam a mudança de mentalidade da população.

No primeiro semestre deste ano, apenas uma em cada sete das doações não efetivadas no estado de São Paulo teve como razão a recusa de um parente (índice de 14,4%). É a menor taxa dos últimos dez anos. E é em razão desse novo cenário que os receptores de órgãos da garota Eloá podem hoje comemorar um ano de vitórias após os transplantes.

Lívia Amodio Novais, de 29 anos, ganhou a córnea de Eloá. Ela diz que teve problemas após a cirurgia, mas que agora já sente a melhora. Formada em direito, ela trabalha em um hospital porque ainda não conseguiu fazer o exame da OAB.

“Estou voltando a enxergar agora. Não conseguia ler e, por isso, não dava para estudar para a prova”, conta ela, que planeja se preparar e prestar um concurso público.

 

Lívia afirma que, mesmo antes de precisar de uma doação, já fazia campanha em casa e na rua. “Eu sempre fui a favor de doar e já convenci pessoas do mesmo, porque a gente nunca sabe o dia de amanhã. Tem que existir essa consciência.”

Ampliar Foto Foto: José Cordeiro/Agência O Globo Foto: José Cordeiro/Agência O Globo
Uma das últimas aparições de Eloá durante o sequestro: órgãos da jovem salvaram vidas (Foto: José Cordeiro/Agência O Globo)

O mecânico Emerson Gentil Dardes, de 26 anos, esperou três anos por um transplante. O pâncreas e o rim de Eloá acabaram salvando sua vida. “Eu tinha de fazer três sessões de hemodiálise por semana, com horário marcado. Não podia beber muito líquido. Era muito ruim.”

 

Quase um ano depois da cirurgia, ele diz que pode fazer “de tudo”. “Dá para sair sem se preocupar com remédios. Marcar uma viagem e não precisar chegar na segunda às 11h para ir ao hospital. Hoje estou 100%.”

Já Maria Augusta dos Anjos, de 39 anos, recebeu o coração da garota. E diz que agora pode realizar os sonhos. Ela já faz caminhada no Parque Trianon e exercícios físicos todos os dias. E espera poder andar de bicicleta em breve, o que nunca fez.

“Antes eu não conseguia fazer praticamente nada. Via meus 12 irmãos para lá e para cá e só eu tinha que ficar quietinha. Tentava esconder que era uma pessoa triste. Agora digo que sou muito feliz.”

Antes de receber o órgão, ela teve de se mudar do Pará para São Paulo. Foram dois anos e meio de espera até o chamado. “Como todo mundo nessa situação, ficava apreensiva, achando que podia surgir uma oportunidade a qualquer hora.”

Agora, conta, sente-se mais independente. “Antes eu não saía nunca sozinha porque desmaiava na rua. Estou aprendendo a me virar. Sinto que finalmente comecei a viver.”

Para Ana Cristina Pimentel, mãe de Eloá, que mantém contato com Maria Augusta e até com o pai dela, que constantemente liga de longe, a felicidade daquela família a faz ter certeza do ato praticado. “É reconfortante.”

Treinamento

Para o médico Luiz Augusto Pereira, coordenador da Central de Transplantes de São Paulo, a repercussão de casos como o da garota Eloá e o treinamento de profissionais de saúde para entrevistar os familiares são os maiores responsáveis pelo ótimo indicador de baixa negativa familiar.

“O principal problema ainda é o diagnóstico de morte encefálica. Para os familiares, é de difícil compreensão que uma pessoa que ainda está com o coração batendo esteja morta. Para conversar com os parentes, a pessoa tem que estar muito preparada”, diz.

Segundo ele, em razão disso nos últimos anos foram feitos vários cursos em São Paulo, com simulações de entrevistas com parentes. “A gente ficava repassando o vídeo, apontava os erros e corrigia.”

A melhora do índice é evidente: em 1999, mais de uma em cada em três doações (ou 37,9%) deixava de ser feita por causa da recusa das famílias, segundo estatística também referente ao primeiro semestre.

Para o cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto, vice-presidente da ABTO, não houve uma mudança cultural, mas, sim, um maior esclarecimento à população. “O medo diminuiu na medida em que o programa de transplantes se mostrou eficaz e transparente”, afirma.

Segundo o médico, que também é coordenador do programa de transplantes do hospital Albert Einstein, as pessoas sabem que os órgãos vão para “uma lista única, mediante critérios estabelecidos, sem qualquer influência política ou econômica”.

Tanto Pereira quanto Ferraz Neto reforçam a importância de as pessoas conversarem em casa a respeito do tema, já que pesquisas mostram que a quase totalidade aceita doar um órgão, mas boa parte não revela essa intenção à família. Quando o desejo é manifesto, afirmam, a chance de a doação se concretizar é quase total.

Neste domingo (27), é comemorado o Dia Nacional da Doação de Órgãos. Não há, no entanto, só motivos para celebrar. Apesar de São Paulo ter avançado no quesito “preconceito familiar”, parte do país não mostra a mesma evolução. No Piauí, por exemplo, a situação é crítica: quase metade das doações não é feita por causa do veto das famílias. Além disso, o número de pessoas que hoje aguardam um órgão no país é alarmente: são 60 mil.

G1

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